sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Entre Linhas...



De linha, agulha e mãos ligeiras
vou tecendo, costurando...
unindo em fios o desalinho de vida que ficou.

Se me distraio, perco o fio,
furo o dedo e cai carmim.
O sangue que corre é o mesmo que a linha une:
seda rubra que cobre vermelhando a prata da pele.

Feliz ofício que sara e reúne, desvendando um novo
nas partes do que um dia pensava ser um todo.

Se continuo, vou franzindo, rebordando...
fazendo renda do que um dia foi um nó.

Pra colocar botão, tenho que fazer casa.
O que entra, pede ter lugar por onde entrar.

Do meu choro, tiro o tempero e a cor:
pra sorrir assim, é preciso de sal, suor e um pouco de dor

Teço em vermelho, choro em amarelo, sorrio em cores de rosas...
Alinhavo o que falta e retiro o que é excesso, verde musgo e cinza chumbo.
Corto o fio, salgo a carne, deixo o tempo passar.

Continuo, recomeço,
Volto o ponto, desfaço o feio,
Caseio o que há de ser belo.
Vou tecendo entremeados....
De linhas, agulhas e mãos ligeiras,
faço de mim, o meu tear...



(carla balthazar)


O Natal do lado de fora...



Cheguei na Tijuca como quem não queria chegar. Meu coração estava incerto sobre o que aconteceria naquele Natal. Nos últimos três anos havia passado este dia lembrando-me daquele em que o coração da minha mãe resolveu não mais continuar.

Mas agora eu tenho trilhado caminhos de restauração. Assumi o papel que me cabe de protagonista da minha vida. Aprendi com um grande amigo que sofrimentos que não nos impulsionam para frente são inúteis e nada acrescentam em nossa caminhada.

Sofrer é verbo que não se pode deixar de conjugar. Basta viver e já se conjuga este verbo indissociável da condição de ser humano. Bom mesmo é cultivar o sofrimento inevitável no tempo certo, e depois fazer a colheita dos frutos que ele traz. Sempre traz. Eu provei isso na carne.

Neste ano, reconciliando-me com meus enganos, curando-me das dores que antes cultivava, resolvi não passar o Natal em casa. Não teria o menor problema em passá-lo sozinha em casa. Afinal, era por dentro que estava curada. As exterioridades nem sempre acompanham o que vai no coração. Casa cheia não é sinônimo de coração cheio. Aceitei, enfim, o convite tantas vezes negado e fui, sem que pudesse imaginar o que estava reservado para mim.

Carro cheio, ruas cheias de gente indo para suas ceias... Tudo aparentemente tão festivo, tão perfeito. Nada que a sombra das esquinas da vida pudesse alcançar. Quase nada. Fui chegando e ao parar o carro ele já me olhava. Não sabia que me olhava, mas sentia seus olhos cravando meu peito.

Encolhido no vão de entrada da imponente casa que servia à uma empresa, na subida do Alto da Boa-Vista, ele parecia dormir. Mas algo ali estava desperto e me olhava nos olhos. Senti uma inquietação e uma vontade imensa de saber quem era aquele homem. Voltaria para saber.

A celebração do nascimento do Deus menino foi regada a músicas que não condiziam em nada com a mística do significado do momento. Já sabia que assim seria. Jovens embriagando-se sem compreenderem o que estava sendo celebrado ali. Por fim, um momento de oração à custa da indignação da Simone ao ver a indiferença diante do homenageado da noite.

Naquele momento senti vontade de pedir por aquele de quem sequer sabia o nome. A noite passou e não consegui desvencilhar-me daquela cena que se passava ali, tão perto.

Já estava me preparando para ir embora, buscando uma forma de levar algo para aquele que acompanhou minha noite. Foi quando o Guima surpreendeu-me em meu querer e falou: "Eu quero levar alguma coisa para um rapaz que está lá fora". Eu sabia quem era: "Eu sei. Eu também", respondi.


Preparei o prato, sobremesa e refrigerante. O que acontecia ali era maior que aquilo e eu sabia. Sabia que aquele gesto era pequeno demais, mas não me alcançava outro possível. Um prato de comida para uma fome suplicante pode ser tudo. Mas não resolve. É paliativo apesar de justo. Mas também sei que não adianta dizer ao que sofre que aguarde por planos grandiosos para a resolução de todos os seus problemas. O urgente é o que há de ser feito.
A salvação do homem pelo homem começa nas pequenas coisas. Nos pequenos gestos. No prato de comida. Na sopa quente em madrugada fria. Na coberta que dispensa o jornal velho. Nas pequenas e individuais atitudes de quem se compadece e dá o primeiro passo, que junto a outros passos, chegarão a algum lugar.

Fomos juntos, eu e Guima, até o local que já me aguardava desde cedo. A pouca luz do local não impediu minha surpresa. Sob o cabelo longo e a barba espessa, sob as roupas poídas e a coberta que mal cobria, sob a sujeira aparente e a dor que não podíamos ver, revelou-se uma fisionomia jovem, transfigurada pela solidão e sofrimento. Seu olhar, ainda meio adormecido, demonstrava não entender o que estava acontecendo. Por certo, não esperava ceia naquela noite.

Com misto de vergonha e educação ele sentou-se acolheu os alimentos que levávamos.
- "Obrigado."
- "Você não tem família, rapaz?" Perguntou meu amigo Guima.
- "Não tenho ninguém aqui. Sou do Espírito Santo."

Um silêncio se fez e em meu coração cresceu uma vontade de saber mais sobre aquele homem. O que o levara até aquele momento. Até aquela calçada. Saber sobre os sonhos que ele viera colher no Rio de Janeiro e que deixara pelos caminhos da vida. Mas calei.

Nos despedimos e quando já retornávamos à casa, resolvi voltar ao homem.
- "Moço, como é mesmo o seu nome?"
- "Marcos. Eu me chamo Marcos."
- "Marcos.... nome bonito. Nome de Apóstolo de Cristo." Foi só o que consegui dizer.

O sorriso que não viera diante da certeza da fome saciada veio agora timidamente. Sua felicidade transbordou diante da minha simples pergunta. Marcos não falou mais nada. Nem eu. Não foi necessário.
Tive ali a certeza de que, para aquele homem, o verdadeiro presente da noite foi alguém perguntar o seu nome. Quantas vezes ele foi chamado pelo nome depois que a vida o colocou naquela situação de indigência? Quantas vezes alguém se interessara em saber? Certamente não muitas.

Nossos passos corridos do dia-a-dia acostumamo-nos com a miséria do outro. Passamos diversas vezes diante de seres humanos jogados em calçadas e becos e fingimos não ver. A pressa e as responsabilidades cotidianas são boas desculpas. Quando nos permitimos notar sua presença ali, os encaramos como um estorvo, como um incômodo dejeto social, como fracassados ou incapazes. Esquecemos que eles têm um nome, que têm uma história.

Acredito que o sorriso do Marcos foi maior para ele mesmo. Aquela pergunta, saber o seu nome, foi como se ele tivesse se recordado de sua identidade. Foi como se, de repente, ele tivesse sido transportado novamente à dignidade humana um dia perdida nas ruas. Foi como se tivesse ficado feliz por ter se lembrado de quem ele é.

Voltei para a festa mas permaneci naquele momento. Finalmente entendi porque Deus havia me conduzido até aquela casa. Encontrei-o no sorriso daquele jovem. Fiquei feliz por estar ali.
Neste Natal, não recebi nenhum presente, não falei com muita gente. Mas o que Deus me proporcionou ficará guardado em mim. Marcos nunca saberá, mas ele foi o melhor presente que eu poderia ter recebido.


O melhor Natal não estava na ceia, não estava nos presentes, nem na alegria das crianças. O melhor Natal, me aguardava onde ninguém queria estar... do lado de fora.



meu amigo... mesmo com todas as distâncias que impossibilitam a proximidade... vc está sempre por perto... pelo meu carinho verdadeiro, pelo que me leva à restauração do meu viver, pela beleza acalentadora da sua palavra... palavra que chegou qdo estava terminando este texto... e me deu a certeza de continuá-lo...

cada dia mais, agradeço a Deus p vc existir em minha vida...

domingo, 21 de dezembro de 2008

Hoje eu sei...


Ele chegou sem pressa de ir embora. Sentou-se ao meu lado e lamentou cena tão incompatível. Como podia, eu ali, diante da eternidade que era minha por herança, fazendo do tudo recebido, um nada abandonado.

Acariciou meu rosto molhado e secou as lágrimas insistentes. Ouviu meus rancores, minhas dores, meus horrores.

Não levantou-me de pronto. Primeiro acolheu-me em seu colo, recostou-me em seu ombro e envolveu-me com sua paz.

No chão dos meus pecados o Salvador se inclinara para que pudesse me alcançar. Depois ergueu-me num abraço demorado e conduziu-me pela mão. Paciente, relevou minha demora e inundou-me de amor.

Não que eu quisesse paz. Não que eu quisesse colo. Não que eu quisesse amor. Queria, antes, a solidão da desesperança que havia.

Mas isso não importa ao coração de um Pai.
Antes da vontade, vem o bem querer.
Antes de mim mesma, veio o Seu amor.

E a Sua luz se fez brilho em meu olhar.
Certeza de ser quem sou, quando eu me esqueci de ser alguém.
Certeza de chegar, quando eu não sabia continuar.
Certeza de ser feliz, quando eu só sabia duvidar.
Certeza de ser amada, quando eu não sabia mais amar

Amor que me invade e me devolve
Olhar que me acalenta e faz curar
Voz que me reconduz e que me diz:

"Filha, eu sempre estive aqui...
E nunca te abandonarei..."

Hoje, Pai...
Hoje eu sei...

carla b.

Artifícios

Artifícios

O ressonar sereno da palavra que repousa
é a afirmação precisa de que a vida segue viva.
Afoita, calada, pronta, inacabada,
não se permite amordaçar
pela ameaça do tempo.
Passa, deixa, leva, traz. Não importa!
Viver é conjugar o possível verbo,
que se insinua sem docilidade
e se apodera da contingência existencial do infante poeta.
Dores e ausências são matérias cotidianas.
Alegria, por vezes.
Se vier mais freqüente, a poesia se vai...
Melhor que se esconda por perto,
caso seja solicitada,
para que esteja à mão, sem estar.
Ela substitui a palavra, amordaça o verbo,
desaponta a caneta, tempera o poeta.
A sobriedade é raiz fecunda,
projeto válido para quem deseja o fundo
e não se contenta com a primeira fala.
A força contrária desenvolve heróis...
A força da fala revigora o gesto.
Palavras são artifícios da alma.
Diz quem quer... fala quem pode.



Pe. Fábio de Melo
Do livro "Tempo: Saudades e Esquecimentos"

A quem interessar possa

a palavra chegou depois
foi só ontem
que ouvi o que foi dito
estava lá
mas não estava
Deus sabe o porquê

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

São Paulo, 40°


Estranho como a fragilidade da matéria nos impõe, quase de imediato, a fragilidade da alma.

O que ontem era insuportável, hoje dói para curar, amanhã levanta e segue adiante.

Arder em febre e o frio que dá, remete o corpo à sua inutilidade desconcertante, ainda que passageira. Faz-nos lembrar da nossa pequenez humana, e nos dilacera diante de algo que sequer conseguimos ver a olho nú.

Mas, felizmente, aprender a olhar a vida com os olhos nús tem suas vantagens. Assim, podemos ver sabedoria até nas dores dos dias viróticos.

Coisa boa é o silêncio que há. Ter que passar várias e várias horas sem falar, sem a obrigação de pensar palavras ordenadas e dizê-las mesmo quando as queremos ocultar, pode ser um santo remédio para as dores da alma. Melhor ouvimos o coração quando silenciamos a boca.

Outra coisa que pode ser boa é a dor que dói em todo o corpo e nos limita os movimentos. Ela nos autoriza a estar na cama às 11 da manhã sem que tenhamos que nos perder em explicações de agenda. Leseira só é permitida quando é doída.

Mas para essas dores... as do corpo... não cabe o silêncio imperativo e oportuno... essas ainda precisam de palavras ditas... vitamina C, paracetamol, mto líquido e cama.

E vick vaporub... pq (já dizia o poeta) dormir com nariz entupido é a própria materialização do inferno, que deve ter cheiro de vick vaporub...

[noites mal dormidas têm cheiro de vick vaporub...]

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Belas adormecidas


Onde estou, ando sumida...

Minhas palavras, não...
Apenas esperam adormecidas...
Fazem que vêm...
E ficam na expectativa de me ver chegar adiante...
E param na perspectiva do meu chegar que não vem...
Adormecem...
E ficam resumidas...
Na complexidade do tudo que ainda podem ser...
Completas... incertas... esquecidas...
Ainda puras... belas... adormecidas...

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Fora dos trilhos...

Hoje uma notícia veio com fúria em seu poder de atingir-me. Não exatamente o contexto, mas o detalhe. Chegou de onde eu menos esperava e num susto, quase levantou-me do chão. Quase. Eu não sei bem se o que senti foi um misto de revolta e inveja ou arrependimento e uma dor que não veio só. Uma dor que alcançou a alma, uma dor que não veio de fora, mas de dentro de mim. Eu não temo confessar as fraquezas de que é feito o meu coração. Aprendi que falar do obscuro que se esconde em meus recantos artificialmente iluminados pode significar descobrir saídas desconhecidas.

Eu fiquei ali, sem um ruído, tentando digerir minhas incapacidades. Ainda me flagro em pensamentos que não combinam com o que eu quero para mim. E vivo para tentar equilibrar pesos e medidas, pensamentos e palavras, realidades e ilusões. Indigestão anunciada, fazendo-se passar por despercebida ancorando-se em um sorriso de um amarelo senil, esforçando-se por ser arco-íris.

Não sei o que me deu. Mas também não fiz força para saber. Prefiro deixar assim, que se tornem palavras dispersas aqui dentro, que se reconfiguram e se articulam quando fora de mim.

Procurar entender seria uma maneira a mais de fazer doer. Saber porque é uma forma de não saber. Como já disse o poeta, significados definitivos encerram em si conceitos engessados em sua dureza de ser o que é sem que consigam ser o que podem. À miúde, podem muito; à priori, muito pouco serão. Por dentro, movimento que clama liberdade. Por fora, rigidez imposta por definição.

Ainda assim, minha racionalidade adquirida tenta dizer-me o que vai aqui no peito. Incomoda saber que o que me atinge, não é o que recebo do outro, mas o que não encontro quando busco em mim.

E, hoje, foi isso o que aconteceu. O silêncio absurdo que chegou com o inesperado da narrativa a mim imposta, deixou expostas as marcas que não sabia como minhas. Eu as tinha no peito, mas não as admitia como parte de mim. Deixava que ficassem ali quietinhas alimentadas de realidades distorcidas e negativas articuladas em nuances puerís.

Difícil reconhecer-se só diante de suas fraquezas, erros e omissões. Difícil mesmo é o reconhecer-se em si.

O que vejo, sou eu de joelhos diante do que não posso, do que jamais poderei. Tentando sorver em gotas um rio que passa veloz e se faz mar logo adiante. Água que é doce, invadida de sal.

O que sinto, sou eu reconhecendo as cicatrizes que me fiz e as que deixei ferir em mim. Cicatrizes impostas, cicatrizes permitidas, cicatrizes desejadas.

Hoje, a que me dói foi chegando aos poucos. No começo era um calor manso. Depois tornou-se desconforto. Agora é a dor da carne desagregada de sua condição de una que, ferida, sangra o vermelho de suas dores.

Queria naquele momento apenas o direito de nada dizer. Queria o direito de silenciar sem que isso incomodasse ou sucitasse divagações alheias inúteis. Queria o direito de não sorrir uma falsa alegria. E ainda assim, me fazer entender.

Eu pequei. Não compartilhei da alegria dividida. Fui infiel aos meus valores. Fui desconexa com meu caráter. Sorri sem sorrir. Agradeci sem gratidão. Orei sem oração. Invejei o que não pode ser invejado, simplesmente por ser o que o outro gostaria que fosse, e não o a realidade do que de fato existe.

Confessar-me pecadora é virtude pretenciosa? Se for, assumo que não saberia ser de outra forma senão assim. Se for, assumo que peco novamente pela pretensão de achar em mim virtude que valha.

Eu pequei. E o pior é que o pecado continua em mim. Ardendo em minhas ausências, antes inundadas de ilusões. O descortinado da realidade mostrando-me que nada é, diante do que queria que fosse.

E isso veio através do detalhe de simples palavra no meio daquilo tudo que meus ouvidos sorviam - "Também". Veio inundada de um orgulho besta que antes era meu e eu não sabia. "Também". Veio arrebatar-me do pensamento que me julgava estar em lugar diferente, mais acercado do que os longes laivos em que me encontrava ancorada.

Eu pequei. Por pensar. Por ser. Por não querer saber pecado o que doía em desacerto.
Mas eu continuo nos desencontros dos meus trilhos. O pecado também.

Importante eu parar.

Para deixar o que dói desembarcar.

Depois... Importante não parar.









(Não entendeu? Que bom. Pensei que tinha sido só eu.)


segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O que me dói não é

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...


São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.


São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.


Fernando Pessoa