sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O Natal do lado de fora...



Cheguei na Tijuca como quem não queria chegar. Meu coração estava incerto sobre o que aconteceria naquele Natal. Nos últimos três anos havia passado este dia lembrando-me daquele em que o coração da minha mãe resolveu não mais continuar.

Mas agora eu tenho trilhado caminhos de restauração. Assumi o papel que me cabe de protagonista da minha vida. Aprendi com um grande amigo que sofrimentos que não nos impulsionam para frente são inúteis e nada acrescentam em nossa caminhada.

Sofrer é verbo que não se pode deixar de conjugar. Basta viver e já se conjuga este verbo indissociável da condição de ser humano. Bom mesmo é cultivar o sofrimento inevitável no tempo certo, e depois fazer a colheita dos frutos que ele traz. Sempre traz. Eu provei isso na carne.

Neste ano, reconciliando-me com meus enganos, curando-me das dores que antes cultivava, resolvi não passar o Natal em casa. Não teria o menor problema em passá-lo sozinha em casa. Afinal, era por dentro que estava curada. As exterioridades nem sempre acompanham o que vai no coração. Casa cheia não é sinônimo de coração cheio. Aceitei, enfim, o convite tantas vezes negado e fui, sem que pudesse imaginar o que estava reservado para mim.

Carro cheio, ruas cheias de gente indo para suas ceias... Tudo aparentemente tão festivo, tão perfeito. Nada que a sombra das esquinas da vida pudesse alcançar. Quase nada. Fui chegando e ao parar o carro ele já me olhava. Não sabia que me olhava, mas sentia seus olhos cravando meu peito.

Encolhido no vão de entrada da imponente casa que servia à uma empresa, na subida do Alto da Boa-Vista, ele parecia dormir. Mas algo ali estava desperto e me olhava nos olhos. Senti uma inquietação e uma vontade imensa de saber quem era aquele homem. Voltaria para saber.

A celebração do nascimento do Deus menino foi regada a músicas que não condiziam em nada com a mística do significado do momento. Já sabia que assim seria. Jovens embriagando-se sem compreenderem o que estava sendo celebrado ali. Por fim, um momento de oração à custa da indignação da Simone ao ver a indiferença diante do homenageado da noite.

Naquele momento senti vontade de pedir por aquele de quem sequer sabia o nome. A noite passou e não consegui desvencilhar-me daquela cena que se passava ali, tão perto.

Já estava me preparando para ir embora, buscando uma forma de levar algo para aquele que acompanhou minha noite. Foi quando o Guima surpreendeu-me em meu querer e falou: "Eu quero levar alguma coisa para um rapaz que está lá fora". Eu sabia quem era: "Eu sei. Eu também", respondi.


Preparei o prato, sobremesa e refrigerante. O que acontecia ali era maior que aquilo e eu sabia. Sabia que aquele gesto era pequeno demais, mas não me alcançava outro possível. Um prato de comida para uma fome suplicante pode ser tudo. Mas não resolve. É paliativo apesar de justo. Mas também sei que não adianta dizer ao que sofre que aguarde por planos grandiosos para a resolução de todos os seus problemas. O urgente é o que há de ser feito.
A salvação do homem pelo homem começa nas pequenas coisas. Nos pequenos gestos. No prato de comida. Na sopa quente em madrugada fria. Na coberta que dispensa o jornal velho. Nas pequenas e individuais atitudes de quem se compadece e dá o primeiro passo, que junto a outros passos, chegarão a algum lugar.

Fomos juntos, eu e Guima, até o local que já me aguardava desde cedo. A pouca luz do local não impediu minha surpresa. Sob o cabelo longo e a barba espessa, sob as roupas poídas e a coberta que mal cobria, sob a sujeira aparente e a dor que não podíamos ver, revelou-se uma fisionomia jovem, transfigurada pela solidão e sofrimento. Seu olhar, ainda meio adormecido, demonstrava não entender o que estava acontecendo. Por certo, não esperava ceia naquela noite.

Com misto de vergonha e educação ele sentou-se acolheu os alimentos que levávamos.
- "Obrigado."
- "Você não tem família, rapaz?" Perguntou meu amigo Guima.
- "Não tenho ninguém aqui. Sou do Espírito Santo."

Um silêncio se fez e em meu coração cresceu uma vontade de saber mais sobre aquele homem. O que o levara até aquele momento. Até aquela calçada. Saber sobre os sonhos que ele viera colher no Rio de Janeiro e que deixara pelos caminhos da vida. Mas calei.

Nos despedimos e quando já retornávamos à casa, resolvi voltar ao homem.
- "Moço, como é mesmo o seu nome?"
- "Marcos. Eu me chamo Marcos."
- "Marcos.... nome bonito. Nome de Apóstolo de Cristo." Foi só o que consegui dizer.

O sorriso que não viera diante da certeza da fome saciada veio agora timidamente. Sua felicidade transbordou diante da minha simples pergunta. Marcos não falou mais nada. Nem eu. Não foi necessário.
Tive ali a certeza de que, para aquele homem, o verdadeiro presente da noite foi alguém perguntar o seu nome. Quantas vezes ele foi chamado pelo nome depois que a vida o colocou naquela situação de indigência? Quantas vezes alguém se interessara em saber? Certamente não muitas.

Nossos passos corridos do dia-a-dia acostumamo-nos com a miséria do outro. Passamos diversas vezes diante de seres humanos jogados em calçadas e becos e fingimos não ver. A pressa e as responsabilidades cotidianas são boas desculpas. Quando nos permitimos notar sua presença ali, os encaramos como um estorvo, como um incômodo dejeto social, como fracassados ou incapazes. Esquecemos que eles têm um nome, que têm uma história.

Acredito que o sorriso do Marcos foi maior para ele mesmo. Aquela pergunta, saber o seu nome, foi como se ele tivesse se recordado de sua identidade. Foi como se, de repente, ele tivesse sido transportado novamente à dignidade humana um dia perdida nas ruas. Foi como se tivesse ficado feliz por ter se lembrado de quem ele é.

Voltei para a festa mas permaneci naquele momento. Finalmente entendi porque Deus havia me conduzido até aquela casa. Encontrei-o no sorriso daquele jovem. Fiquei feliz por estar ali.
Neste Natal, não recebi nenhum presente, não falei com muita gente. Mas o que Deus me proporcionou ficará guardado em mim. Marcos nunca saberá, mas ele foi o melhor presente que eu poderia ter recebido.


O melhor Natal não estava na ceia, não estava nos presentes, nem na alegria das crianças. O melhor Natal, me aguardava onde ninguém queria estar... do lado de fora.



meu amigo... mesmo com todas as distâncias que impossibilitam a proximidade... vc está sempre por perto... pelo meu carinho verdadeiro, pelo que me leva à restauração do meu viver, pela beleza acalentadora da sua palavra... palavra que chegou qdo estava terminando este texto... e me deu a certeza de continuá-lo...

cada dia mais, agradeço a Deus p vc existir em minha vida...

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